🛸 olá, internautas! 🛸
já faz muitos anos que deixei de ter interesse em usar o instagram como um lugar pra postar fotos minhas ou compartilhar momentos da minha vida. em partes, foi um processo pessoal, mas acredito que teve uma parte muito maior e mais significante que é relacionada a como a própria empresa se transformou e transformou o aplicativo. não é novidade que o instagram é um aplicativo de compra e venda muito mais do que uma rede social, mas não é exatamente disso que quero falar hoje. na verdade, quero falar sobre o que diz o título dessa newsletter. porque, um dia, postei um poema no instagram e, quando o vi publicado, descobri que era ruim. mas a gente não tá aqui pra eu chorar sobre meus poemas de qualidade duvidosa. a gente tá aqui pra falar de linguística.
a gente tá aqui pra falar de linguística
na linguística, tem um momento que cê descobre que nada tem sentido intrínseco. não é que nada tenha sentido. é que nada tem sentido intrínseco. signos (imagens, palavras, sons) não significam nada por si só, mas quando postos em uma situação específica, em relação a outros signos, acontecimentos etc., podemos entender o que está sendo comunicado. é o famigerado contexto, né. mas linguista não curte muito essa palavra, acaba optando por situação e condições de produção.
a vida é cheia de situações que criam condições de produção para um enunciado, balizas e vias que nos ajudam a atribuirmos sentido pro que foi dito. é aquela coisa de quando você fala algo relacionado à novela e a pessoa que não vê novela fica perdida e você fica AMIGA??? DA NOVELA?? e a pessoa fica com cara de paisagem (eu sou essa pessoa). acontece com tudo. e antes, de certa forma, era mais fácil de encontrar esses sentidos comuns porque, bom, todo mundo meio que via novela porque era a única coisa que tinha pra ver. todo mundo comentava as notícias a partir do jornal nacional porque era esse o grande porta-voz das notícias. mas já faz um tempo que as coisas são um pouco diferentes.
não vou voltar pro início da internet porque esse não é um artigo acadêmico, então vamos falar direto das redes sociais. a partir do momento em que as redes sociais começaram a se tornar ubíquas, os feeds dessas redes começaram a ser o que aqui chamaremos de balizadores de sentido. isso pode ser meio natural pra gente, afinal, se você tá ali lendo uma coisa, é claro que você vai pensar sobre ela e vai estar com isso na cabeça quando ler algo literalmente embaixo do que o que você acabou de ver. não parece nada de novo sob o sol, até que, de repente, você começa a notar que não existe mais um furo jornalístico simplesmente porque as pessoas comentam as notícias a partir do que outras pessoas estão falando. não tem mais um emissor que centraliza a situação. não. agora, temos vários emissores criando diversas situações diferentes e que levam a mil interpretações.
tuiteires, sabe quando o seu tuíte hita e, do nada, começa a chegar várias pessoas te xingando por uma coisa que nem se aplica a você? tipo você dizer que se irrita quando alguém para do lado esquerdo da escada rolante daí alguém fala mal da pressa paulistana sendo que você não é e nem mora em são paulo. ou você diz que queria ver um filme que se passasse na sapucaí e alguém mete um caps lock dizendo que você é uma sudestina que invibiliza as experiências do norte. ou aquela vez que você queria saber o que levou suas amigas a ouvirem kpop e uma pessoa disse que você era xenofóbica. pois bem. todas essas situações acontecem não apenas porque as pessoas são insanas e precisam se afirmar como superiormente morais nas redes sociais, mas também porque cada um está inserido em uma situação diferente, em que uma coisa está atrelada a outra. eu, por exemplo, como fã de bts, acho que a recusa de escutar kpop, nem que seja pra saber o que é, não precisa gostar, tem um componente xenofóbico sim. ao mesmo tempo, acho razoável e curioso descobrir como cada pessoa entrou no fandom do kpop exatamente porque essa não era uma indústria mainstream no brasil por muito tempo. o problema é que ver alguém perguntando “pq vcs gostam de kpop?”, sem saber qual é o interesse do enunciador ao perguntar isso, soa muito como um ataque passivo-agressivo que kpoperos costumam sofrer. assim como alguém reclamando de uma pessoa confusa no metrô pode parecer uma intolerância cultural ou você falando que queria uma história x pode ser lido como apagamento de outras histórias. é aí que reclamamos que tudo foi tirado de contexto.
não tô dizendo que o problema da internet é que não tem contexto, porque a internet tem muito, muito contexto. o que tô dizendo é que geramos sentido a partir das situações que vivemos. e o que acontece na internet é que, cada vez mais, estamos vivendo situações diferentes dos outros. isso já era assim desde o começo da internet, porque:
cada usuário escolhe quais sites visita e quais aplicativos usa;
cada usuário cria sua própria rede através de quem escolhe seguir;
mas o interessante é que, com os feeds organizados via algoritmo, entra também um fator externo ao usuário e que, de certa forma, é externo também aos programadores. um fator não-humano, que seja. não que os programadores e, especialmente, os ceos não tenham sua responsabilidade, porque eles obviamente têm. mas a partir do momento que o código foi criado e o algoritmo funciona sozinho, esses trabalhadores muitas vezes param de observar/ controlar o que está sendo mostrado pra cada pessoa. é coisa demais pra um ou mil humanos processarem.
é coisa demais pra um ou mil humanos processarem
então, entra o fator máquina. e, com a máquina, criam-se novos cantos, novas distâncias e, com isso, novas situações que separam ainda mais um usuário de outro. o feed algorítmico faz com que cada pessoa veja coisas diferentes em diferentes momentos. ele cria um senso de totalidade, de que “todo mundo” tá vendo, lendo, falando, ouvindo e pensando as mesmas coisas, que só existem aqueles dois ou três assuntos no máximo. mas isso é o que acontece no seu feed. no feed da sua melhor amiga, as coisas são outras.
é um meme que você nunca viu, uma cursed image com que você já esbarrou três vezes, uma arroba que cê nunca ouviu falar, algum acontecimento que você ainda não entendeu direito, um vídeo que cê jura que vai arrancar seus olhos se aparecer na sua tl mais uma vez, uma música que você não consegue parar de ouvir. tudo isso faz parte dessa dinâmica que automatiza e individualiza as nossas experiências on-line e, porque são on-line, são também off-line.
porque são on-line, são off-line também
hoje em dia, é difícil estar em uma situação em que você não conhece muito bem a pessoa do seu lado e perguntar “menina, cê viu isso?” e a resposta ser sim. normalmente, você fala do carlos drummond de andrade cancelado por homofobia e a pessoa vai te olhar com uma cara de interrogação gigantesca, quando você viu isso acontecer 4 anos atrás. mas às vezes, a resposta é sim mas as informações que cada um tem é diferente. xi, amiga, isso aí é um vídeo antigo. é fake news. não foi bem assim. tem toda uma outra história acontecendo que você não fazia ideia.
essas coisas tiram o nosso chão comum. é difícil desenvolver um laço por menor que seja com uma pessoa simplesmente porque vocês não têm uma base que permita o começo da conversa. às vezes, mesmo entre amigues tem aquela pessoa que fica como a que sabe de tudo e outra que fica como a perdida no rolê. estamos com dificuldades de encontros, de sentidos comuns.
isso também dificulta a expectativa que cada um de nós temos ao entrar numa ou outra rede social e o que vamos de ver de cada perfil. eu não espero que minha amiga advogada com conta privada poste a foto de uma calcinha absorvente, isso vai vir da conta de alguma marca ou influencer que fala sobre menstruação. ao mesmo tempo, espero que minha amiga poste fotos dela, de pessoas próximas a ela e de lugares que ela visitou, o que acharia bizarro de ver em uma conta institucional ou de marca. mas não é só isso. eu, por exemplo, tenho a política pessoal de não seguir perfis comerciais no instagram – todos os restaurantes ou lojas em que quero ir estão numa pasta de salvos, mas não os sigo. também evito seguir muitos influencers ou perfis literários. ao mesmo tempo, eu sigo muitos perfis de artistas e de instituições que lidam com arte. isso significa que, quando abro meu instagram, espero ver quadros, ilustrações, estátuas e outros objetos artísticos ou ateliers. é estranho pra mim entrar nessa rede e ver uma frase motivacional em um fundo de cor pastel. mas, quando tenho acesso aos feeds de amigas minhas, isso é uma coisa extremamente comum, enquanto ver a porrada de cursed image e foto sem foco é bizarro pra elas.
isso quer dizer que a maneira com que eu posto no instagram é diferente da maneira com que minhas amigas postam. porque, quando vou postar, eu penso no que conversa com o meu feed, não o dos outros, porque é o meu feed a única coisa que conheço e estou acostumada dentro daquela rede. então, quando eu vou postar um poema, é estranho pra mim colocar um fundo que emula um papel pólen e usar uma fonte de máquina de escrever. mesmo que isso seja super comum no meio literário do instagram, eu não considero que isso vai chamar a atenção de alguém, porque isso jamais chamaria atenção no meu feed.
além disso, poemas têm tamanhos diferentes, nem sempre cabem direito numa única imagem de post. então, como vou separar os versos e estrofes? isso é uma questão também. mas quando eu decidi postar meu poema, minha situação era outra
minha situação era outra
escrevo poesia desde sabe-se lá quando como um exercício pra mim mesma. já pensei em publicar coisas, já publiquei uma ou outra on-line, até tentei livros, mas a minha experiência com minha própria poesia é muito mais pessoal, de espera e depuração, em que demoro anos e mais anos relendo, mexendo no texto e criando conjuntos diferentes que poderiam ser considerados coleções ou livros ou sei lá. existem poemas que gosto mais, existem poemas que gosto menos. existem poemas que fazem mais sentido ou têm mais impacto em um ou outro momento. hoje em dia, não me preocupo mais com isso. mas também não significa que não sigo mexendo na minha escrita.
e uma das coisas que eu gosto de fazer como exercício e que me ajuda a concentrar é criar zines. eu não vendo zines, não tenho energia pra feirinhas ou pra distribuir coisas por aí. mas gosto de desenhar à mão num papel dobradinho e gosto de associar esses desenhos com algo que escrevi. e, nessas horas, como o modelo que uso é de zine curta, muitas vezes um poeminha fica ideal. então, eu imprimo ou escrevo à mão um poema que acho que tem a energia do que desenhei e colo em cima da página com cola pritt mesmo.
e, às vezes, quando eu me preocupo com meu instagram estar muito morto, me parece simpático postar alguma coisa que ando fazendo ou revisitando. em geral, são ilustrações. mas um dia senti essa vontade de compartilhar minhas zines de poesia, então postei.
então postei
e ler meu parco poema (que, na vdd, eu ainda gosto) no contexto do feed – com fotos de pessoas, fotografias premiadas, quadros famosos e quadros que estão pela primeira vez vendo a luz do dia, posts de protesto, foto de amigos juntos, fotos profissionais em eventos sérios, gente muito mais profissional que eu, gente muito menos profissional que eu… ver meu poema lá no meio de tudo isso não fez sentido nenhum. porque imagina só. entre esse meio de informação de gente, produto, obra, opinião a favor, opinião contrária, gente gostosa, gente feia, foto de lixo, um gato deformado, no meio de tudo isso, tu lê assim:
tipo… o que tem a ver? nada. não tem NADA a ver. posto assim, sem nenhuma explicação, no meio de mil outras coisas que não têm nada a ver com imortalidade e efemeridade, você só lê isso e parece um tuíte aleatório separado de um jeito estranho. não existe nada em volta dele que o estabilize como algo além de uma frase aleatória. sozinho, não existe construção poética, nada que aponte a uma tradição literária de escrever sobre mortalidade/ imortalidade, ou à percepção da mutabilidade na natureza como eterna, ou mesmo ao gênero da poesia marginal. e o negócio da poesia marginal é que ela mesma, só solta assim na nuvem, parece um tuíte genérico. eu mesma tenho a teoria de que muito da poesia marginal (que é meu gênero literário preferido) só pode existir porque não existia a internet, muito menos as redes sociais como conhecemos. um poema marginal sozinho é só uma frase esquisita, um conjunto deles é o que os torna poesia.
mas eu, tonta, esqueci disso. e só postei uma frase nada a ver no instagram. mas, depois disso, eu tinha que terminar a fileira. então, se você quer ler os outros poemas que postei, considere começar com esse aqui, que tem uma legenda sincera.
a promessa que não prometo cumprir é: nunca mais posto poemas no meu instagram.
bjoks,
clara
muito curioso o que vc disse sobre a poesia marginal só existir porque não existia internet já que ontem mesmo peguei a teus pés da ana cristina césar pra ler e inicialmente não consegui engajar muito. e vendo isso agora, é porque tudo tinha cadência de tuíte
"um homem imortal
ainda precisa
cortar as unhas"
eu amei isso!